Low-Code: o débito técnico que ninguém vê

A Ilusão da Democratização

Prometeram uma revolução. Um mundo onde qualquer pessoa, de qualquer departamento, poderia construir aplicações robustas com a simplicidade de arrastar e soltar blocos. O movimento low-code e no-code explodiu, impulsionado por uma narrativa de agilidade e redução de custos. De fato, a consultoria Gartner prevê que, até 2025, 70% dos novos aplicativos serão construídos com essa tecnologia. Contudo, por trás dessa fachada de empoderamento, estamos arquitetando silenciosamente nosso próximo grande pesadelo tecnológico.

A velocidade se tornou um fetiche, mas a que custo? Ao entregar as chaves do desenvolvimento sem os devidos manuais de engenharia, abrimos as portas para o caos. Portanto, o que está sendo vendido como uma solução ágil é, na verdade, a semente de um débito técnico impagável e de uma complexidade acidental que assombrará as empresas por anos.

Do Sonho Rápido ao Pesadelo da Manutenção

Embora muitos celebrem a velocidade de entrega, a realidade do campo de batalha tecnológico mostra que essa euforia inicial invariavelmente resulta em uma ressaca de manutenção brutal. A relação de causa e efeito é direta e implacável.


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Primeiramente, existe a armadilha do protótipo eterno. Kushank Aggarwal, fundador da DigitalSamaritan, resumiu a situação perfeitamente: sua equipe foi da ideia ao primeiro cliente pagante em apenas quatro dias usando uma abordagem no-code. Um sucesso, certo? Errado. Assim que o produto precisou escalar, a plataforma se mostrou incapaz de lidar com a base de usuários crescente, exigindo uma “reconstrução completa e migração de todos os usuários”. Consequentemente, a agilidade inicial se converteu em um projeto de refatoração arriscado, repleto de potencial para perda de dados e downtime.

Além disso, a proliferação de ferramentas sem governança fomenta o que chamamos de Shadow IT. Quando o marketing, o financeiro e o RH podem criar seus próprios sistemas isolados, o departamento de TI perde completamente o controle. O resultado? Uma fragmentação de dados perigosa, sistemas que não se comunicam e vulnerabilidades de segurança massivas. Um exemplo anônimo, mas dolorosamente real, é o de uma equipe de marketing que, ao usar um CRM no-code não autorizado, expôs milhares de registros de clientes a violações.

Finalmente, o aprisionamento tecnológico, ou vendor lock-in, é a consequência mais perversa. Muitas dessas plataformas operam como ecossistemas fechados. Siri Varma Vegiraju, da Microsoft, é categórico: “Se você precisa trocar de plataforma, é um pesadelo”. Diferente do desenvolvimento tradicional, onde se pode alterar componentes de infraestrutura e dependências, a troca de uma plataforma low-code exige que tudo seja reconstruído do zero. Portanto, a empresa se torna refém de custos crescentes, limitações de flexibilidade e do risco constante de que o fornecedor descontinue um recurso crítico.

A Nova Ordem da Complexidade

O problema não é apenas a má gestão; a própria natureza dessas ferramentas, especialmente com a ascensão da Inteligência Artificial Generativa, está criando novas e mais perigosas classes de débito técnico. Precisamos entender a nova ordem que se estabelece.

A Falácia da Abstração: Quando a Simplicidade Esconde a Complexidade

O pilar do low-code é a abstração. O problema é que essa abstração é frequentemente “vazada”, ou seja, ela esconde a complexidade real até que seja tarde demais. As plataformas oferecem templates e componentes pré-definidos que carecem de profundidade para soluções verdadeiramente customizadas. Por exemplo, a tentativa de adicionar métricas de comparação de vídeo multicamadas ou melhorias via IA em uma ferramenta no-code se tornou um processo “tedioso e demorado” para a equipe de Arsalan Zafar, da Deep Render, forçando-os a gastar tempo extra em soluções improvisadas.

Nesse sentido, o mundo da automação de testes oferece uma analogia perfeita. Ferramentas que prometem testes com “gravar e reproduzir” parecem mágicas. Contudo, elas geram scripts frágeis, atrelados a detalhes de implementação como XPaths e seletores CSS. Uma pequena mudança na interface do usuário pode quebrar dezenas de testes, transformando a manutenção em um inferno. A simplicidade era apenas uma fachada.

O Falso Dilema: No-Code Morreu, Low-Code se Transforma

É crucial fazer uma distinção que o mercado frequentemente ignora. O No-Code, em sua forma mais pura, está com os dias contados, sendo engolido pela IA Generativa. Como aponta Gordon Van Huizen, da Mendix, o no-code respondeu a um problema específico por um tempo, mas seu ciclo acabou. Por outro lado, o Low-Code está evoluindo. As plataformas mais maduras estão se posicionando não como substitutas do código, mas como orquestradoras de complexidade, adicionando camadas de governança, segurança e escalabilidade sobre os ativos gerados, inclusive por IA. A Microsoft, com sua Power Platform, é um exemplo claro dessa tendência: usar agentes de IA para analisar requisitos e gerar soluções dentro de um framework gerenciável.

Rumo à Abstração Consciente

Nós, engenheiros, arquitetos e líderes de tecnologia, fomos seduzidos pela promessa de velocidade, mas ignoramos os princípios fundamentais da engenharia de software: manutenibilidade, escalabilidade e governança. A questão não é abolir as abstrações, mas adotá-las com consciência e rigor técnico.

É hora de agir. Amanhã, na sua empresa, comece a mudança:

  1. Institua Governança, Não Proibição: Combata o Shadow IT criando um catálogo de ferramentas aprovadas. Exija validação e revisão de arquitetura para qualquer aplicação de missão crítica criada em plataformas low-code. A agilidade não pode ser uma desculpa para a anarquia.
  2. Exija Transparência e Portabilidade: Antes de assinar qualquer contrato, faça a pergunta mais importante: “Qual é a minha estratégia de saída?”. Se a plataforma não oferece uma forma clara de exportar a lógica de negócio e os dados de maneira agnóstica, rejeite-a. Não construa seu futuro em uma prisão digital.
  3. Trate a IA Como um Desenvolvedor Júnior: O código gerado por uma LLM deve ser tratado como o primeiro pull request de um estagiário: uma boa primeira versão, mas que exige revisão rigorosa por um sênior. Garanta que um humano qualificado esteja sempre no comando, validando a segurança, performance e, acima de tudo, a legibilidade do que foi gerado.
  4. Diferencie Protótipo de Produto Escalável: Use low-code para o que ele é excelente: validar hipóteses e construir MVPs rapidamente. Contudo, tenha um plano claro para a transição para uma arquitetura escalável e sustentável. Não permita que o sucesso de um protótipo o condene a uma arquitetura que não suportará o crescimento.

O futuro não pertence àqueles que simplesmente clicam e arrastam, mas àqueles que souberem orquestrar essas novas ferramentas com a disciplina e a visão de longo prazo que a verdadeira engenharia exige.


Sobre o autor

Rodrigo Zambon
Sólida experiência em Metodologias Ágeis e Engenharia de Software, com mais de 15 anos atuando como professor de Scrum e Kanban. No Governo do Estado do Espírito Santo, gerenciou uma variedade de projetos, tanto na área de TI, como em outros setores. Sou cientista de dados formado pela USP e atualmente estou profundamente envolvido na área de dados, desempenhando o papel de DPO (Data Protection Officer) no Governo.
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